Recebimento: 10/02/2025 |
Fase: Distribuir proposição ao Procurador para elaboração de parecer |
Setor:Procuradoria |
Envio: 10/07/2025 12:41:09 |
Ação: Parecer Emitido
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Tempo gasto: 150 dias, 1 hora, 33 minutos
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Complemento da Ação: Processo nº: 367/2025
Projeto de Lei nº: 82/2025
Requerente: Vereador Cabo Rodrigues
Assunto: “Proíbe o Uso de Símbolos e Liturgias Cristãs em Eventos e Manifestações Públicas com o Intuito de Satirizar, Ridicularizar ou Menosprezar a Religião Cristã ou Suas Práticas ou Fiéis”.
Parecer nº: 450/2025
PARECER DA PROCURADORIA GERAL
1. RELATÓRIO
Cuidam os autos de Projeto de Lei nº 82/2025, de autoria do Vereador Cabo Rodrigues, que “Proíbe o Uso de Símbolos e Liturgias Cristãs em Eventos e Manifestações Públicas com o Intuito de Satirizar, Ridicularizar ou Menosprezar a Religião Cristã ou Suas Práticas ou Fiéis”. Em seus fundamentos o Ilustre Vereador defende que “o Projeto de Lei em questão busca estabelecer um parâmetro para respeitar os símbolos e crenças cristãs em Serra. A medida reforça, o compromisso do município de Serra com os princípios constitucionais que garantem a convivência harmônica em uma sociedade plural, como a liberdade de consciência e crença (art. 5º, VI, CF) e a proteção à dignidade humana (art. 1º, III, CF)”.
Diante disso, a Presidência desta Casa de Leis encaminhou-nos o processo para a necessária averiguação da constitucionalidade do Projeto de Lei, com consequente emissão de Parecer.
Compõem os autos até o momento o projeto de Lei e justificativa, motivo pelo qual a Presidência desta Casa de Lei nos encaminhou os autos para a sua análise jurídica preliminar. Nestes termos, relatado o feito na forma dos parágrafos anteriores, considerando a importância e urgência da proposta sob avaliação, passo a opinar de forma direta e objetiva.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Nestes termos, relatado o feito na forma dos parágrafos anteriores, passo a opinar.
Ab initio, é preciso ressaltar que o presente parecer é meramente opinativo e decorre do mandamento consubstanciado no art. 18, IV, da Lei Municipal nº 6.134/2025, o qual determina à Procuradoria elaborar pareceres escritos nos processos que lhe forem encaminhados pelo Presidente desta Augusta Casa de Leis, a fim de assegurar a correta e justa aplicação do ordenamento jurídico pátrio, bem como resguardar as competências atribuídas pela Lei Orgânica do Município e as normas estabelecidas na Resolução nº 278/2020.
Nesse diapasão, convém destacar que a emissão do presente parecer não representa óbice a eventual análise jurídica acerca de outras questões não abordadas no mesmo ou no tocante ao mérito da matéria submetida ao apreço, em caso de solicitação pelas Comissões, Mesa Diretora ou Presidência.
Nessa vereda, ressalta-se que no presente parecer jurídico preliminar, de um modo geral, aprecia-se a legalidade e constitucionalidade do projeto de lei sobre três perspectivas elementares: a um, a matéria legislativa proposta deve se encontrar entre aquelas autorizadas pela CF/88 aos Municípios; a dois, se foi respeitada a rígida observância das preferências quanto à iniciativa para proposição prevista pela ordem jurídico-constitucional; a três, a possibilidade de violação por parte da matéria legislativa proposta à direitos fundamentais ou instituições tuteladas por regras ou princípios constitucionais.
Em via reflexa, cumpre destacar que a aprovação de um projeto de lei também passa pela comprovação dos requisitos constitucionais e legais para a sua regular tramitação.
Do ponto de vista material, a análise da constitucionalidade do Projeto de Lei nº 82/2025 revela vícios insanáveis que atentam contra núcleos essenciais da Constituição Federal. Embora a competência legislativa municipal para tratar de assuntos de interesse local seja inquestionável, conforme o art. 30, I, da Constituição, essa prerrogativa não confere ao Município um poder ilimitado, devendo sempre se conformar aos princípios e direitos fundamentais estabelecidos na Carta Magna.
A liberdade de expressão, consagrada no art. 5º, IX, e no art. 220 da Constituição Federal, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Conforme ensina o Ministro Alexandre de Moraes, a proteção a essa liberdade "não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também àquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias". O projeto de lei, ao pretender proibir a "utilização de Símbolos e Liturgias Cristãs em manifestações públicas com o intuito de menosprezar, vilipendiar ou ultrajar a fé Cristã", institui uma forma de censura prévia sobre o conteúdo de manifestações, o que é expressamente vedado pelo § 2º do art. 220 da Constituição.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e de outros tribunais do país é pacífica em rechaçar leis que, a pretexto de proteger sentimentos religiosos, acabam por cercear indevidamente a liberdade de expressão. Em casos análogos, como na TJ-RJ – ADI 0090398-56.2021.8.19.0000, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro declarou a inconstitucionalidade de lei municipal que proibia a satirização de dogmas e crenças, por entender que a norma feria a liberdade de expressão e o pluralismo de ideias. Da mesma forma, o TJ-SP - Direta de Inconstitucionalidade: 21488789020248260000 considerou inconstitucional lei que vedava o vilipêndio de símbolos religiosos, por configurar censura prévia.
Ademais, o projeto de lei viola o princípio da laicidade do Estado, previsto no art. 19, I, da Constituição Federal, ao conferir uma proteção especial a uma determinada religião em detrimento das demais e da liberdade de crítica e de manifestação dos não-crentes. O Estado deve manter-se neutro, garantindo a todos o direito de crer e de não crer, e de expressar suas convicções, desde que não incorram em discurso de ódio, o que deve ser analisado e punido a posteriori pelo Poder Judiciário, e não por meio de uma proibição genérica e prévia como a que se pretende instituir.
É fundamental ressaltar que a liberdade de crença, protegida constitucionalmente, não se esgota na esfera íntima da convicção individual. Ela possui uma dimensão externa essencial, que garante a livre manifestação de ideias e posicionamentos sobre o fenômeno religioso.
Nesse sentido, o renomado constitucionalista José Afonso da Silva, em sua obra "Curso de Direito Constitucional Positivo", esclarece que a liberdade religiosa abrange não apenas a liberdade de consciência e de escolha da religião, mas também a liberdade de exercício dos cultos e de expressão pública da fé. Contudo, essa proteção se estende simetricamente àqueles que não professam crença alguma. A liberdade de não crer e de expressar o pensamento crítico, a sátira ou a discordância em relação a dogmas e símbolos religiosos é uma faceta indissociável da liberdade de expressão e do próprio princípio da laicidade.
O Projeto de Lei, ao tentar blindar um conjunto específico de símbolos e liturgias contra qualquer forma de expressão que considere "menosprezo", ignora essa complexidade. Ele não apenas impõe uma censura indevida, mas também restringe a própria amplitude da liberdade de crença, que deve proteger tanto o devoto em seu culto quanto o cético em sua crítica. Ao fazer o contrário, o Estado abandona sua neutralidade e passa a tutelar uma visão de mundo em detrimento de outras, o que é vedado pela ordem constitucional.
Este adendo fortalece a argumentação ao demonstrar que a proteção à liberdade religiosa não pode ser interpretada como um escudo contra a crítica, mas sim como uma garantia de pluralidade de pensamento, que inclui tanto a fé quanto a ausência dela.
Nesse lamiré, o Projeto de Lei nº 82/2025, de autoria parlamentar, padece de vício de inconstitucionalidade material insanável. Ao pretender criar uma redoma protetiva em torno de símbolos de uma religião específica, a proposição legislativa institui uma inaceitável censura prévia, que atenta diretamente contra o núcleo essencial da liberdade de expressão (art. 5º, IX, e art. 220 da Constituição Federal).
Ademais, a norma viola de forma flagrante o princípio da laicidade do Estado (art. 19, I, da CF), que impõe ao poder público um dever de neutralidade e veda o estabelecimento de privilégios ou distinções em razão da crença. A proteção à liberdade religiosa não pode ser transmutada em um instrumento para silenciar a crítica, a sátira ou o dissenso, que são fundamentais para a vitalidade de uma sociedade plural e democrática.
Eventuais abusos no exercício da liberdade de expressão, que configurem discurso de ódio ou incitação à violência, já encontram repressão na legislação penal e devem ser analisados a posteriori pelo Poder Judiciário, e não por meio de uma lei que, a pretexto de proteger, acaba por cercear direitos fundamentais de forma desproporcional.
Portanto, conclui-se que o projeto é materialmente incompatível com a Constituição Federal, devendo ser integralmente rejeitado.
No que tange à análise formal, o Projeto de Lei nº 82/2025 padece de flagrante vício de iniciativa, um defeito que macula sua origem e impede sua validade jurídica. A proposição, de autoria parlamentar, institui a aplicação de multa administrativa aos infratores, adentrando em matéria cuja competência é reservada ao Chefe do Poder Executivo.
A criação de sanções de natureza administrativa, bem como a definição de suas hipóteses de incidência e a estruturação dos meios para sua fiscalização e cobrança, é matéria de natureza eminentemente administrativa. Tal prerrogativa insere-se na esfera de competência privativa do Prefeito, a quem cabe dispor sobre a organização e o funcionamento da administração municipal, conforme o princípio da separação dos poderes (art. 2º da Constituição Federal), que é de observância obrigatória pelos municípios.
Ao legislar sobre o tema, o parlamentar autor da proposta usurpa a competência reservada ao Poder Executivo, criando atribuições e encargos para a administração pública sem a iniciativa do seu gestor máximo. A jurisprudência dos tribunais superiores é consolidada no sentido de que leis de iniciativa parlamentar que resultem em criação de despesas ou em novas atribuições para órgãos do Executivo são formalmente inconstitucionais.
Dessa forma, independentemente da análise de mérito sobre a matéria de fundo, a proposição é formalmente inconstitucional, o que, por si só, representa um óbice intransponível à sua tramitação e eventual aprovação.
Com relação às questões de técnica legislativa, observo que o projeto de lei não atendeu às principais diretrizes da Lei Complementar nº 95/98, que estabelece normas para a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. A proposição apresenta uma estrutura deficiente, com uma distribuição assistemática de suas normas, o que compromete a clareza, a precisão e a ordem lógica do texto.
Um erro manifesto reside na forma como a sanção (multa) é apresentada em um artigo separado da conduta que se visa proibir. A boa técnica legislativa, conforme o art. 11 da referida Lei Complementar, orienta que os parágrafos sirvam como desdobramentos do comando principal do artigo (caput), detalhando uma exceção, uma complementação ou uma circunstância. A penalidade, neste caso, é a consequência direta e imediata da infração descrita no artigo inicial. Portanto, a multa deveria constar em um parágrafo do mesmo artigo que estabelece a proibição, e não em um artigo autônomo, o que quebra a unidade de sentido e a conexão lógica entre a conduta e sua sanção.
Essa falha na articulação do texto, ao não agrupar disposições correlatas sob o mesmo artigo, gera um texto fragmentado e de difícil interpretação, configurando um claro vício de técnica legislativa que, por si só, já justificaria a sua rejeição ou, no mínimo, uma profunda reestruturação pela comissão competente.
Ressalto ainda que em consulta ao sítio eletrônico desta Casa, esta proposta legislativa não se encontra rejeitada nesta Sessão Legislativa, não incidindo, a princípio, o óbice previsto no artigo 67 da CF, e tampouco é objeto idêntico de outra proposição em tramitação, em atenção ao Art. 141 e seus parágrafos, do Regimento Interno desta Câmara Legislativa, a Resolução nº 278/2020.
Ante a todo o exposto, entendo que o presente Projeto de Resolução reúne os requisitos mínimos legais para a sua tramitação.
3. CONCLUSÃO
Posto isso, firmada em todas as razões e fundamentos já expostos, opina esta Procuradoria pelo não prosseguimento do Projeto de Lei nº 82/2025, por este apresentar vício formal de iniciativa, ao usurpar competência privativa do Poder Executivo; inconstitucionalidade material, por violar frontalmente a liberdade de expressão e o princípio da laicidade do Estado; e, por fim, graves defeitos de técnica legislativa. Tais vícios, em conjunto e isoladamente, recomendam o arquivamento da matéria, sem embargos de eventual análise jurídica sobre outras questões não abordadas neste parecer, em caso de solicitação pelas Comissões Competentes, Mesa Diretora ou Presidência.
Ressaltamos que o presente Parecer é de natureza opinativa e não vinculatório específico para este processo, de modo que, todos aqueles participantes do processo, em especial o gestor público, dentro da margem de discricionariedade, juízo de valor e ação que lhes são conferidos, deverão diligenciar pela observância dos princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais no caso em destaque.
Destarte, ressaltamos que, incumbe a esta Procuradoria Geral prestar consultoria sob o prisma estritamente jurídico, não lhe competindo adentrar nas razões e pertinência temática do projeto, motivo pelo qual o presente posicionamento não contém natureza vinculativa e sim opinativa, não vinculando o posicionamento desta Procuradoria para outras situações concretas, ainda que parecidos a este projeto.
Esses são os esclarecimentos que formam nosso parecer.
Serra/ES, 10 de julho de 2025.
LUIZ GUSTAVO GALLON BIANCHI
Procurador
Nº Funcional 4075277
MAYCON VICENTE DA SILVA
Assessor Jurídico
Nº Funcional 4113594-2
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Documento(s) da tramitação:
Despacho Digital
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