| Recebimento: 24/03/2025 |
Fase: Distribuir proposição ao Procurador para elaboração de parecer |
Setor:Procuradoria |
| Envio: 17/09/2025 15:14:08 |
Ação: Parecer Emitido
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Tempo gasto: 177 dias, 22 minutos
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Complemento da Ação: Processo nº: 590/2025
Projeto de Lei nº: 133/2025
Requerente: Vereador Pastor Dinho Souza
Assunto: “Proíbe a realização de quaisquer tratamentos ou procedimentos hormonais e cirúrgicos para mudança de gênero em menores de dezoito anos no âmbito do município da Serra e dá outras providências”.
Parecer nº: 556/2025
PARECER DA PROCURADORIA GERAL
1. RELATÓRIO
Cuidam os autos de Projeto de Lei nº 133/2025, de autoria do Vereador Pastor Dinho Souza, que dispõe o “Proíbe a realização de quaisquer tratamentos ou procedimentos hormonais e cirúrgicos para mudança de gênero em menores de dezoito anos no âmbito do município da Serra e dá outras providências”. Em seus fundamentos o Ilustre Vereador justifica a proposta, no sentido de que “visa resguardar a integridade física, mental e emocional de crianças e adolescentes”, e mais “A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente garantem que as crianças e adolescentes devem ser protegidos pelo Estado, pela família e pela sociedade, portanto, é imprescindível que se assegure o desenvolvimento saudável dos jovens, até que atinjam a maioridade e possam tomar decisões conscientes e respeito de procedimentos que podem trazer impactos profundos e irreversíveis em suas vidas”.
Diante disso, a Presidência desta Casa de Leis encaminhou-nos o processo para a necessária averiguação da constitucionalidade do Projeto de Lei, com consequente emissão de Parecer.
Compõem os autos até o momento o projeto de Lei e justificativa, motivo pelo qual a Presidência desta Casa de Lei nos encaminhou os autos para a sua análise jurídica preliminar. Nestes termos, relatado o feito na forma dos parágrafos anteriores, considerando a importância e urgência da proposta sob avaliação, passo a opinar de forma direta e objetiva.
2. FUNDAMENTAÇÃO
Nestes termos, relatado o feito na forma dos parágrafos anteriores, passo a opinar.
Ab initio, é preciso ressaltar que o presente parecer é meramente opinativo e decorre do mandamento consubstanciado no art. 18, IV, da Lei Municipal nº 6.134/2025, o qual determina à Procuradoria elaborar pareceres escritos nos processos que lhe forem encaminhados pelo Presidente desta Augusta Casa de Leis, a fim de assegurar a correta e justa aplicação do ordenamento jurídico pátrio, bem como resguardar as competências atribuídas pela Lei Orgânica do Município e as normas estabelecidas na Resolução nº 278/2020.
Nesse diapasão, convém destacar que a emissão do presente parecer não representa óbice a eventual análise jurídica acerca de outras questões não abordadas no mesmo ou no tocante ao mérito da matéria submetida ao apreço, em caso de solicitação pelas Comissões, Mesa Diretora ou Presidência.
Nessa vereda, ressalta-se que no presente parecer jurídico preliminar, de um modo geral, aprecia-se a legalidade e constitucionalidade do projeto de lei sobre três perspectivas elementares: a um, a matéria legislativa proposta deve se encontrar entre aquelas autorizadas pela CF/88 aos Municípios; a dois, se foi respeitada a rígida observância das preferências quanto à iniciativa para proposição prevista pela ordem jurídico-constitucional; a três, a possibilidade de violação por parte da matéria legislativa proposta à direitos fundamentais ou instituições tuteladas por regras ou princípios constitucionais.
Em via reflexa, cumpre destacar que a aprovação de um projeto de lei também passa pela comprovação dos requisitos constitucionais e legais para a sua regular tramitação.
Do ponto de vista material, e atentando para a regra constitucional que prescreve a competência legislativa local dos municípios, percebe-se claramente que, não estando a matéria aqui tratada no rol daquelas de competência legislativa privativa da União ou dos Estados, não há óbice para que o assunto seja regulado por Lei Municipal.
Este entendimento decorre do art. 30, I e II, da Constituição Federal, do art. 28, I e II, da Constituição Estadual e do art. 30, I e II, e 99, XXVIII, da Lei Orgânica Municipal, todos dispositivos que asseguram a competência da Câmara Municipal para legislar acerca de assuntos de interesse local, suplementando a legislação federal e estadual.
Constituição Federal
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
Constituição Estadual
Art. 28. Compete ao Município:
I - legislar sobre assunto de interesse local; II - suplementar a legislação federal e estadual no que couber;
Lei Orgânica do Município da Serra
Art. 30 - Compete ao Município da:
I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - Suplementar a legislação federal e estadual, no que couber;
A análise de um projeto de lei requer a verificação de sua conformidade com as normas de hierarquia superior, o que se denomina controle de constitucionalidade. Este se desdobra em dois aspectos principais: o formal, que avalia o processo legislativo, e o material, que examina o conteúdo da norma.
A proposição não trata da criação de órgãos, estruturação de secretarias ou organização administrativa do Poder Executivo. Seu objetivo é criar uma norma de conduta (uma proibição) para a sociedade e para os sistemas de saúde.
Assim, sob o prisma da iniciativa, o projeto não apresenta vício formal, pois se enquadra na competência legislativa geral dos vereadores. Contudo, essa constatação não supera os vícios insanáveis de incompetência legislativa e de inconstitucionalidade material, como passamos a analisar.
No tocante a competência do Município para legislar sobre a matéria, é imperioso destacar que a Constituição Federal estabelece uma repartição de competências legislativas entre a União, os Estados e os Municípios. O tema em questão, normas sobre procedimentos de saúde e proteção à infância que envolvem o estado e a capacidade civil da pessoa, não se enquadra na competência municipal.
Isso porque, conforme o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre direito civil, o que abrange as normas que definem a capacidade da pessoa e os direitos da personalidade. A proibição contida no projeto interfere diretamente em decisões sobre o próprio corpo e a identidade, matérias afetas ao direito civil.
Por outro lado, o artigo 24, incisos XII e XV, estabelece que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde e proteção à infância e à juventude. Nesse modelo, à União cabe editar as normas gerais, enquanto os Estados e Municípios podem suplementá-las. A regulamentação de procedimentos médicos complexos, como a transição de gênero, é matéria que exige uniformidade nacional, sendo tratada por meio de resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), que estabelecem as diretrizes para todo o país. Uma lei municipal que proíbe o que a norma geral federal autoriza (sob critérios técnicos) não é suplementar, mas sim restritiva e contrária à norma geral, extrapolando a competência municipal.
Destarte, a competência do Município, prevista no artigo 30, incisos I e II, restringe-se a assuntos de interesse local e à suplementação da legislação federal e estadual. A regulamentação de procedimentos médicos de alta complexidade e que envolvem direitos fundamentais não constitui matéria de interesse predominantemente local, não possuindo competência legislativa para proibir tais procedimentos, usurpando competência que é da União.
Doutro giro, além do vício de incompetência, o projeto padece de inconstitucionalidade material, pois atenta diretamente contra diversos princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, a saber:
O projeto nega o acesso a tratamentos de saúde reconhecidos pela comunidade médica e científica como necessários para o bem-estar de pessoas com incongruência de gênero. A proibição absoluta impede a análise individualizada de cada caso, violando o direito à saúde em sua dimensão de acesso a tratamento.
Por derradeiro, a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad) determinam que todas as decisões relativas a menores devem visar ao seu melhor interesse. A proibição genérica e absoluta, sem permitir a avaliação médica, psicológica e familiar de cada caso, ignora essa diretriz, presumindo, sem base técnica, que a vedação é a melhor solução para todos.
Já com relação às questões de técnica legislativa, observo que o projeto de lei atendeu às principais diretrizes da Lei Complementar 95/98, o que não impede eventuais aperfeiçoamentos pelas Comissão deste Parlamento, dentro da margem da conveniência e oportunidade.
Nesse contexto, cumpre esclarecer que, conforme estabelece o art. 141 e seus parágrafos do Regimento Interno desta Câmara Legislativa, nos termos da Resolução nº 278/2020, as proposições devem ser protocolizadas eletronicamente ou, excepcionalmente, no Protocolo Geral da Casa, sendo numeradas em ordem sequencial e encaminhadas à Presidência, prevalecendo, em caso de matérias idênticas, a de protocolo mais antigo, com arquivamento das demais. No entanto, após consulta ao sistema legislativo e ao sítio eletrônico desta Casa, verifica-se que não há, nesta Sessão Legislativa, qualquer outra proposição com o mesmo objeto, não incidindo, portanto, o óbice de duplicidade previsto no referido artigo, tampouco a vedação do art. 67 da Constituição Federal, que trata da reapresentação de projetos rejeitados na mesma sessão legislativa.
Diante disso, ainda que se reconheçam os elevados valores que possam ter motivado a proposição da norma, não há como endossar o Projeto de Lei em avaliação. A proposição padece de vícios insanáveis de inconstitucionalidade, pois não apenas usurpa a competência legislativa da União para tratar sobre direito civil e normas gerais de saúde, como também fere frontalmente princípios constitucionais basilares, como a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e a isonomia.
3. CONCLUSÃO
Posto isso, firmada em todas as razões e fundamentos já expostos, opina esta Procuradoria pelo não prosseguimento do Projeto de Lei nº 133/2025, pois, flagrantemente inconstitucional, por incompetência do Município para legislar sobre a matéria, que é de competência da União (art. 22, I, e art. 24, XII e XV, da CF), bem como por violação direta a direitos e garantias fundamentais, como o direito à saúde, a dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade e a proteção integral da criança e do adolescente (art. 1º, III; art. 5º, caput; art. 196; e art. 227 da CF), sem embargos de eventual análise jurídica sobre o mérito da presente matéria, em caso de solicitação pelas Comissões Competentes, Mesa Diretora e Presidência ou outras questões não abordadas neste parecer.
Ressaltamos que o presente Parecer é de natureza opinativa e não vinculatório específico para este processo, de modo que, todos aqueles participantes do processo, em especial o gestor público, dentro da margem de discricionariedade, juízo de valor e ação que lhes são conferidos, deverão diligenciar pela observância dos princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais no caso em destaque.
Destarte, ressaltamos que, incumbe a esta Procuradoria Geral prestar consultoria sob o prisma estritamente jurídico, não lhe competindo adentrar nas razões e pertinência temática do projeto, motivo pelo qual o presente posicionamento não contém natureza vinculativa e sim opinativa, não vinculando o posicionamento desta Procuradoria para outras situações concretas, ainda que parecidos a este projeto.
Esses são os esclarecimentos que formam nosso parecer.
Serra/ES, 17 de setembro de 2025.
FERNANDO CARLOS DILEN DA SILVA
Procurador
Nº Funcional 4073096
MAYCON VICENTE DA SILVA
Assessor Jurídico
Nº Funcional 4113594-2
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Documento(s) da tramitação:
Despacho Digital
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